Redux: alguns avisos politicamente (in)correctos*
Nuno Portas
1. (Re)habitar é um dos componentes da revitalizar partes de uma cidade que já foi única e agora é múltipla, como são o Porto ou Lisboa. Mas não nos iludamos: já não será para as mesmas classes de pessoas que lá foram ficando nem para as mesmas classes de pessoas que foram procurando outros lugares no espaço metropolitano – por razões de custos, de modo e de modos de vida, de proximidades, de ambiente.
Os futuros habitantes das áreas centrais se se mantêm as tendências de outras nacionalidades, serão outra gente, city-user’s como agora lhe chamam: mais novos, mais solventes, mais em trânsito ou temporários, talvez mais pedestres, mas também outros, como os imigrantes dependentes de empregos de serviços que ocupam os nichos residuais não reabilitados. Programas rígidos morosos e caros como o do Barredo (anos 70) não se tem repetido – nem em Bolonha!
2. Os outros componentes de revitalisar uma área central não têm tanto que ver com o habitat mas com o trabalho, com os serviços, os consumos, os ócios (restauração incluída) e, cada vez mais, a hotelaria e as residências especiais ou de função. Estes, tem sido na “Europa das cidades”, os motores da revitalização económica e da reabilitação dos imóveis. O que parece óbvio, como solução - e falo das cidades maiores – não o é tanto na prática, devendo ter-se em conta que esta revolução funcional entra em conflito com os designios políticos de manter a função habitacional tradicional, com os desígnios ambientais de evitar o transporte individual e, ainda, com os designios de coexistência entre os comércios e escritórios tradicionais e os novos que dão prestígio e pagam o m2 de centralidade. Com o critério do “não se pode ter tudo” ou “não se devem pôr todos os ovos no mesmo cesto”, as soluções mais conseguidas são as de compatibilização de interesses apriori inimigos. O caso do Chiado (que não é o da Baixa) é um exemplo interessante dos compromissos satisfatórios e dos que ainda faltam. Aliás, depois do Metro lá chegar, as perspectivas melhoraram.
3. Deixei para trás um aspecto mais polémico – o cultural – ou seja, o de se manterem ou alterarem mais ou menos profundamente, o que se poderia chamar a “imagem” herdada de uma área urbana, sobretudo quando reconhecida como caracteristica de uma época. Já sabemos que não é resposta a este problema que se arrasta à quase um século entre contextualistas e renovadores. E falo já da imagem arquitectónica, lida nos edifícios singulares ou nos conjuntos e não da imagem urbana que pode sobreviver às sucessivas e variadas culturas artísticas como verdadeiro palimpsesto que manterá e qualifica no essencial o sistema estruturante do espaço público. Enquanto a edificação se renova obedecendo aos cadastros de regras de implantação aceites como suficientemente consensuais. Estas regras dependem obviamente das características de cada área urbana em transformação – desde as mais unitárias e emblemáticas (a Baixa de Lisboa, o miolo intra-muros de Guimarães ou Évora), às mais ecléticas e que ofereçam maiores graus de liberdade (as avenidas novas de várias cidades burguesas). O “bom senso e bom gosto”, como diziam os homens cultos de oitocentos...
4. A polémica do Bolhão (como do Parque Meyer na Capital), teria uma saída suficientemente consensual se não fosse a trapalhada administrativa arranjada pelo municipio ou pela SRU por razões conjecturais, de quem não percebeu a tempo como devia conduzir o processo – desde os antecendentes (que eram respeitáveis) aos consequentes que se revelaram irresponsáveis. E a prova está na evidente dificuldade presente em reconduzir a termos sensatos ou aceitáveis um processo de concurso pelos vistos sem as regras necessárias e suficientes para orientar ou balizar o negócio legítimos dos concorrentes. Não está em discussão, neste momento, a decisão de alienar o Mercado, nem sequer a exigência de intocabilidade da sua construção. Há exemplos já citados na discussão pública – como o de Convent Garden em Londres ou de St.Germain em Paris – que podiam ter ajudado a definir essas regras. Para já não falar da proposta a concurso anteriormente escolhida que mesmo sem ser imposta na sua integridade (já que correspondia a outro processo) teria indicado as limitações arquitectónicas e não só: também as dotações de estacionamento ou dos tipos de alojamento aceitáveis (certamente de tipo hoteleiro) e de mix comercial (para proteger interesses locais ou tradicionais). E agora?
A verdade é que o caso Bolhão teve antecedentes no afã de decidir sem medir as consequências – ou de se querer mostrar que tudo o que se fez antes estava errado...E afinal, neste como noutros casos conhecidos, estava-se no caminho certo e podia-se ter evitado o pior.
5. O caso Bolhão – para além da questão, nada secundária, como disse atrás, de ser renovado mantendo a memória da pedra e do ferro da escola do arquitecto Marques da Silva (que não foi um arquitecto qualquer) – não deixa de levantar uma questão, mais geral, de governância urbana e de conformação arquitectónica.
É a questão da escolha dos programas para certos lugares ou edifícios singulares que se bem doseados podem detonar ou ancorar as reabilitações generalizadas no seu entorno (efeitos colaterais ou de catálise como também se diz).
Estes programas são sujeitos a duas tentações extremas: a da continuidade temática a acompanhar o mimetismo físico ou, no outro extremo, a da mudança radical de programa, em geral por razões financeiras, que já são lugares comuns, e que transformam o existente numa espécie de caricatura, deixando alguns elementos do antigo como alibis envergonhados da mudança. Entre estes dois extremos, o conservador e o novo-rico-fantasista, há felizmente diversas composições de funções e linguagens dos espaços que podem trazer novidade à área consolidada mas decadente à sua volta. Inovação temática que carece de imaginação na alternativa a programas convencionais, serão esgotados, que resultaram noutras situações urbanas e podem falhar nas áreas centrais em perda e pedra. Pré-reformadores imaginativos precisam-se! Do mesmo modo, a ingénua solução de fingir que se conserva a memória do lugar tornando-a “décor” alusivo pode nem ter o efeito de renovação e atraiçoar o de conservação. Arquitectos transfiguradores (com bom senso) precisam-se igualmente!
6. Isto dito, em termos genéricos, não queria terminar sem voltar ao lugar do Bolhão. Toda a opinião, sem experimentar hipóteses mais concretas é sempre um risco, sobretudo, quando os problemas obrigam a repensar e avaliar, ao mesmo tempo, programa(s) e configuração(ões). À partida, quere-me parecer que a compacidade e regularidade do conjunto de ruas e quarteirões e a singularidade do edifício-quarteirão que é o mercado não deixaria muitas dúvidas de que não é um lugar para invenções descontextualizadas, incluindo a substituição da coerência e unidade da fachada pétrea que encerra e abre para as ruas. O exercício que me proporia seria o de repensar o novo programa dessa parede para o interior e, ao mesmo tempo, do interior para fora. Assim, e ao contrário, do que se faz habitualmente num centro comercial solitário, neste caso o programa não pode ser um dado padronizado, mas uma resultante nova do que essa dialéctica “interior/exterior” e “pré-existente/modificação” nos imporia. E mais não digo.
*Nuno Portas [Arquitecto e Urbanista]
*Este texto foi escrito pelo arquitecto Nuno Portas no âmbito da segunda sessão do seminário Porto Redux. Agradecemos, desta forma, a disponibilidade e o interesse demonstrado pelo autor.
**Sessão realizada no dia 24 de Abril de 2008, no Espaço Oficina da Galeria Fernando Santos, sobre o tema: Cidades: emergências + permanências. Contou com a presença de: Rui Losa [Arquitecto - SRU], Rio Fernandes [Géografo - FLUP], Alexandra Gesta [Arquitecta - Guimarães], Rui Moreira [Economista - Associação Comercial Porto];Moderador: Nuno Grande [Arquitecto - FAUP]
Porto Redux Releases [Agosto 2008]
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