26 maio 2008

black box - small recordings for architecture

O que vejo melhor, vejo-o mal!
pedro bismarck
Em suma: só vejo o que surge mesmo à minha frente; só vejo o que surge muito perto de mim; o que vejo melhor, vejo-o mal.
Samuel Beckett [i]
#001
i.
Tudo parte de um equívoco no qual se confunde 'imagem' com 'exposição'. Em que apresentar imagens de uma realidade passou a significar hoje expôr essa mesma realidade. Na esfera-holográfica do espectáculo da televisão ou do computador, onde fluem abundantemente as imagens-virtuais, estas passam a ser o próprio objecto, não mais 're-presentação', mas sim, simples 'a-presentação'. A imagem passa a ser a própria coisa que quer representar, substituindo-a anula o próprio lugar da coisa. Cria um intervalo, um vazio expectante.
#002
ii.
Expôr não é re-presentar, é apresentar-se. A exposição é, como diz Giorgio Agamben [ii], o que acontece por uma coisa existir. Este singular evento, a possibilidade de qualquer coisa existir e se expôr ao mundo, este 'ser-dito', não cabe numa imagem, não tem sequer nada a ver com imagens. Expôr, expôr-se, é existir, é revelar-se ao mundo com todos os seus predicados [iii]. É ser-no-mundo, é construir no mundo o lugar das coisas.
Imagem, não é a-presentar, é representar-se. É o evento intimamente humano de criar figuras, imaginar a realidade, o sonho do Pigmalião: “formar não simplesmente uma imagem para o corpo amado, mas um outro corpo para a imagem, quebrar as barreiras orgânicas que impedem a incondicionada pretensão humana à felicidade”
[iv]. A imagem pressupõe sempre uma re-construção, a sua natureza é a superação da própria realidade. Não simulação, mas imaginação.
#003
iii.
Nesse movimento sem fim entre as coisas que são e as coisas que nunca foram, as imagens abrem sempre uma possibilidade de acesso, constroi-se o lugar metafísico do homem, mas anuncia-se uma distância, um limite: há sempre uma impossibilidade de tocar. Vejo essa imagem dos teus lábios a suster um beijo, as tuas mãos a suspenderem-se sobre o meu rosto e não posso tocar, não posso tocar-te. Tal como nas imagens demoradas sobre o tempo de Wong Kar-Wai, 'the past was something that he could see but not touch'
[v]. Nessa impossibilidade reside também a sua extrema poiesis: a imagem nunca deve ocultar a sua iminente poesia, que é ser não a realidade, mas aquilo que um dia foi produzido como se fosse realidade, aquilo que alguém quis que fosse a realidade. Criar imagens é construir o outro lugar das coisas, o da eterna-possibilidade de as coisas poderem ser sempre uma outra coisa. A beleza da imagem só pode resistir como a beleza impossível de uma coisa que o foi, que existiu, apenas naquele momento, não eternização, mas sim efemeridade. O abismo suspenso sobre a imagem como impossibilidade de tocar, deve estar sempre aí.
iv.
A técnica e o espectáculo da abundância transformaram a imagem. Ela já não é transmutação poética da realidade, a possibilidade, o meio de desvendar e compreender criticamente a realidade, mas apenas projecção sem espessura, ilusão de exposição, anulação de espaço. A imagem-fotográfica do século XXI passou a significar o acesso instantâneo à superfície instável e desfocada da realidade. Projecção de imagens sobre imagens projectadas, é este o não-lugar escorregadio da sociedade do espectáculo. Mas como diz Susan Sontag: “(...) Al poblar este mundo ya abarrotado con su duplicado de imágenes, la fotografía nos persuade de que el mundo es más accesible de lo que en verdade es”
[vi]. A magia da imagem, o i-mago, o talismã secreto que é a imagem, já não está hoje na imagem em si, mas na abundância generalizada de imagens que povoam o mundo. Confundir o mundo pela aparência das suas próprias imagens, exposição como representação foi o sistema de imunidade [vii] encontrado pelo homem para se persuadir que o mundo é muito mais acessível do que na verdade é. A ditadura do espectáculo, esvazia o lugar das imagens, torna-as em espectros-projecções, torna-as exposição de realidades inexistentes e, por isso, facilmente manipuláveis (e alienáveis). Este equivoco é a essência do próprio espectáculo.
#004
v.
Ao confundir a imagem como exposição do próprio mundo, o assassinato é duplo, a imagem perde a sua 'poiesis', deixa de ser possibilidade para passar a ser certeza, deixa de construir o outro-lugar, ou os lugares (im)possíveis (e metafísicos) da realidade. Ao mesmo tempo, reduz a realidade, o ser e a sua existência, a uma combinação digital de pixels, a uma frágil projecção. Esquece-se o lugar da imaginação e aniquila-se o lugar próprio das coisas. Distância e duração, são substituídas por abundância e instante. A imagem-espectáculo contemporânea já não é a possibilidade de acesso, mas sim, o lugar vazio das possibilidades esquecidas, o terreno vago das imaginações ausentes. Cada imagem é hoje a projecção paradoxalmente infinita das coisas exiladas do seu próprio lugar. Cada imagem é hoje um lugar abandonado.
vi.
Esse vazio à espera de ser ocupado. Esse lugar-expectante das coisas que flutuam esquecidas do outro lado do écran, será o lugar que a arquitectura deverá (continuar a) ocupar. Preencher a profundidade destes espaços, habitar sobre essa duplicidade inequivocamente humana, ser exposição e integração do homem no mundo, mas também, imaginação desveladora da realidade
[viii]. Ser Exposição e Imaginação não homogeneizando, mas sim, operando sobre a íntima distância entre estes dois lugares, é esse o iminente espaço-coreográfico da arquitectura. Construíndo-se também como imagem, a arquitectura deixa de o ser porque ela possui essa distinta capacidade de poder deixar tocar. É esse o 'genius loci' da arquitectura, para além da linguagem, da imagem ou da metáfora, só a arquitectura permite que entre a sombra e o desejo que percorre a linha sinuousa entre exposição e imaginação (entre as coisas que são e aquilo que queriamos que elas fossem), o homem possa tocar indelevelmente, simultâneamente, a realidade e o sonho. Não na experiência instantânea do espectáculo, mas na experiência demorada e poética do espaço. “Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que não se compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e duas perpendiculares, mas sim de trés linhas sinuosas, prolongadas no infinito, incessantemente aproximadas e divergindo sem cessar: o que um homem julgou ser, o que ele quis ser e o que ele foi.” [Marguerite Yourcenar] [ix]. O espaço entre estas três linhas é o lugar da arquitectura.

*Pedro Levi Bismarck, Fevereiro 2008, Porto
artigo publicado na revista dédalo 4.1 sobre o tema 'imagem'.
Legenda das imagens:
001# Só a arquitectura permite que entre a sombra e o desejo que percorre a linha sinuousa entre exposição e imaginação (entre as coisas que são e aquilo que queriamos que elas fossem), o homem possa tocar indelevelmente, simultâneamente, a realidade e o sonho. [In the mood for love, Wong Kar-Wai]
002# Criar imagens é construir o outro lugar das coisas, o da eterna-possibilidade de as coisas poderem ser sempre uma outra coisa. Imagem não é exposição. [Pygmalion et Galatée, Jean-Léon Gérôme]
003# Turistas amontoam-se sobre o altar do templo de Edfu no Egipto, não para ver mas para fotografar. Mesmo defronte do objecto, não interessa vê-lo, mas sim, fotografá-lo. Não há tempo. Só a fotografia pode provar que estivemos lá. [PB, Edfu, Egipto, Agosto 2007]
004# A imagem-espectáculo contemporânea, já não é a possibilidade de acesso, mas sim o terreno vago das imaginações ausentes Cada imagem significa hoje um lugar abandonado. [Norman Foster, Crystal Island]


Referências
[i] Samuel Beckett, O Inominável, Assirio & Alvim,Lisboa, 2002
[ii] Giorgio Agamben, A Comunidade Que Vem, Editorial Presença, Lisboa,1993
[iii] Giorgio Agamben, A Comunidade Que Vem, Editorial Presença, Lisboa,1993
[iv] Giorgio Agamben, A Comunidade Que Vem, Editorial Presença, Lisboa,1993
[v] Wong Kar-Wai, In The Mood For Love, China, 2000
[vi] Susan Sontag, cit. in Juhani Pallasmaa, Los Ojos De La Piel, GG, Barcelona,2006
[vii] Peter Sloterdijk, Esferas III, Biblioteca de Ensayo Siruela, Madrid, 2006
[viii] Alberto Pérez-Gómez, Built Upon Love, MIT Press, Cambridge, 2006
[ix] Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Ulisseia, Lisboa, 2004